segunda-feira, 6 de junho de 2016

Nascer mulher


Nasci mulher
no dia do guerreiro
não sei se era na lua
talvez fosse na rua,
eu sei que tinha dragão
que ainda está na minha mão....


Nasci mulher
em país de censura
aprendi a contar palavras
              a hesitar
tantas as estórias de chegadas
                 de escravidão
tantas as estórias de tortura


violências formação de minha nação

Nasci menina
fui correr em uma favela,
     negrinhas
brincadeiras pelo barro
vermelho colante encantador,
sabe o que é vestido de menina enlameado?
alegrias   fantasias   liberdades
   e o pirão pelo chão se esfarelando

As meninas iam embora
    casas de família
empregadinhas no cimento da cidade
presas fáceis de patrões
     necessitados
de aventuras....      de poder...  de lascívia....
meu pequeno coração se destroçando....



Nascer mulher no poder de homens fortes
acaba logo com o direito de falar,
muitas vezes era pra dançar
com aquele que convidava
passo desafinado
silêncio devorador
falta de vontade de ficar,
meu pobre coração
se acovardando.....



Nasci mulher no dia do guerreiro
ficou este dragão na minha mão
    vontade de escrever
    desejo de gritar,
meu país é macho ou é fêmea?
gigante masculinizado
esperando pela força da mulher...


Quem é ela que deslocou os raios?
resistência, signos ativos,
linguagens para enfrentar....
quem é ela que ultrapassou
a linha da hostilidade
comandante em mundo de homens ferozes?
quem é ela que fez da minha terra masculina
travessia para outro
       mundo de mulher?


Quem é que beija assim o presente,
descontrai o passado  
    fazendo para o futuro uma passarela de novos
pensamentos?
Nasci mulher em país de censura
caminho de tortura
mas estive com ela em dia de sol
blusa branca     echarpe vermelho,
muitas vozes, jovens, maduras
brancas, morenas,  negras
rosas desabrochando nos abraços que trocamos....

Quem é ela que está na TV desengonçada
cara de tristeza  aguda
que pare que nada muda,
mas chega até nós com um sorriso
força de quem nunca morreu,
compondo nossos quadros tão floridos?


Quem pode encarnar
uma natureza tão tenaz
porte de luta
reforço de nossas vozes femininas?



E quem é ele?
vem do podre esquecido,
tenta de novo silenciar
nossos suspiros?
Quem mandou estuprar minha terra,
roubar meu barro
formador de passarelas?
A argila vermelha,
    negrinhas,
amiguinhas desencantadas

E ele vem com sua língua de mesóclises,
seus bonecos de milhões
          filho, Petit Prince,
mulher empalhada,
desbotando nossos anos de conquistas,
em caminhos de nada que, com mais nada, dá em nada....

Quero língua crioula
no limite da ordem e da desordem
quero língua
de gente de batalha
voz guiando nosso andar....


Ele me bate todos os dias
   me emudece
a mesóclise me deixa tonta
a ênclise quebra meus desejos.....

Estou querendo guerrear
mas a moléstia paralisa meu braço direito
mas o dragão não sabe sair da minha mão
queria de novo ir até ela
seguir o perfume dos ramalhetes
colhidos em nossa
gritos de luta pedindo VOLTA


Queria dizer que ela tem a delicadeza
 de um jardim,
mesmo sem saber,
aniquila
as ervas daninhas do terreno,
revela o outro lado da terra
                  falhas
                 orifícios
                 montículos
com paciência vai permitindo a fertilidade do país


A masculinidade existe
 e encanta,
  mas só a masculinidade
produtiva de humanidade é aceitável.
Atravessada de machismo,
não define nenhum saber.


Estou aqui,  dragão na mão,
vestido ainda enlameado na argila da favela
esperança no jardim da mulher comandante.
Seu karma ( o dela)
é o mais radical
que possa conhecer
                   
transformação


Mesmo se o poder desfalece,
seu jardim já gravou
a lição de história

que procuro desde a infância.....













Licia Soares de Souza Web Developer

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