Nasci mulher
no dia do guerreiro
não sei se era na lua
talvez fosse na rua,
eu sei que tinha dragão
que ainda está na minha mão....
Nasci mulher
em país de censura
aprendi a contar palavras
a
hesitar
tantas as estórias de chegadas
de escravidão
tantas as estórias de tortura
violências formação de minha nação
Nasci menina
fui correr em uma favela,
negrinhas
brincadeiras pelo barro
vermelho colante encantador,
sabe o que é vestido de menina enlameado?
alegrias
fantasias liberdades
e o pirão
pelo chão se esfarelando
As meninas iam embora
casas de
família
empregadinhas no cimento da cidade
presas fáceis de patrões
necessitados
de aventuras....
de poder... de lascívia....
meu pequeno coração se destroçando....
Nascer mulher no poder de homens fortes
acaba logo com o direito de falar,
muitas vezes era pra dançar
com aquele que convidava
passo desafinado
silêncio devorador
falta de vontade de ficar,
meu pobre coração
se acovardando.....
Nasci mulher no dia do guerreiro
ficou este dragão na minha mão
vontade de
escrever
desejo de
gritar,
meu país é macho ou é fêmea?
gigante masculinizado
esperando pela força da mulher...
Quem é ela que deslocou os raios?
resistência, signos ativos,
linguagens para enfrentar....
quem é ela que ultrapassou
a linha da hostilidade
comandante em mundo de homens ferozes?
quem é ela que fez da minha terra masculina
travessia para outro
mundo de
mulher?
Quem é que beija assim o presente,
descontrai o passado
fazendo para
o futuro uma passarela de novos
pensamentos?
Nasci mulher em país de censura
caminho de tortura
mas estive com ela em dia de sol
blusa branca
echarpe vermelho,
muitas vozes, jovens, maduras
brancas, morenas,
negras
rosas desabrochando nos abraços que trocamos....
Quem é ela que está na TV desengonçada
cara de tristeza
aguda
que pare que nada muda,
mas chega até nós com um sorriso
força de quem nunca morreu,
compondo nossos quadros tão floridos?
Quem pode encarnar
uma natureza tão tenaz
porte de luta
reforço de nossas vozes femininas?
E quem é ele?
vem do podre esquecido,
tenta de novo silenciar
nossos suspiros?
Quem mandou estuprar minha terra,
roubar meu barro
formador de passarelas?
A argila vermelha,
negrinhas,
amiguinhas desencantadas
E ele vem com sua língua de mesóclises,
seus bonecos de milhões
filho,
Petit Prince,
mulher empalhada,
desbotando nossos anos de conquistas,
em caminhos de nada que, com mais nada, dá em nada....
Quero língua crioula
no limite da ordem e da desordem
quero língua
de gente de batalha
voz guiando nosso andar....
Ele me bate todos os dias
me emudece
a mesóclise me deixa tonta
a ênclise quebra meus desejos.....
Estou querendo guerrear
mas a moléstia paralisa meu braço direito
mas o dragão não sabe sair da minha mão
queria de novo ir até ela
seguir o perfume dos ramalhetes
colhidos em nossa
fé
gritos de luta pedindo VOLTA
Queria dizer que ela tem a delicadeza
de um jardim,
mesmo sem saber,
aniquila
as ervas daninhas do terreno,
revela o outro lado da terra
falhas
orifícios
montículos
com paciência vai permitindo a fertilidade do país
A masculinidade existe
e encanta,
mas só a
masculinidade
produtiva de humanidade é aceitável.
Atravessada de machismo,
não define nenhum saber.
Estou aqui, dragão na mão,
vestido ainda enlameado na argila da favela
esperança no jardim da mulher comandante.
Seu karma ( o dela)
é o mais radical
que possa conhecer
transformação
Mesmo se o poder desfalece,
seu jardim já gravou
a lição de história
que procuro desde a infância.....